Juliana França David, no Portal CONJUR
Sócia fundadora do escritório França David & Barreto Advogados
Lembro que, da última primeira vez que assisti ao documentário Bowling for Columbine (Tiros em Columbine), de Michael Moore, ainda estava no início da faculdade de Direito e, singelamente, era bem menos sóbria e cuidadosa sobre minhas reflexões do que sou hoje.
De forma ingênua, eu — e creio que boa parte das pessoas viu o documentário logo nos idos dos anos 2000 a 2010, quando misoginia e machismo eram temas restritos a poucos blogs e fóruns, sem toda a reverberação que vemos atualmente nas redes sociais e na mídia. Tirei como conclusão que o bullying, essa entidade incorpórea que polui a experiência de tantos jovens na escola, essa sim era a culpada pelo boom dos school shootings (tiroteios escolares).
Errada estava, claro.
Esse fenômeno dos tiroteios escolares, como o conhecemos hoje, ganhou lugar nas manchetes, nas notícias e no imaginário popular especialmente devido à experiência americana. Em 2022, foram 193 incidentes com armas de fogo em escolas nos Estados Unidos [1].
No pequeno espaço que tenho aqui, não me atrevo a tentar destrinchar todos os aspectos difíceis envolvendo a questão dos massacres escolares — propostas republicanas de treinamento e fornecimento de armas para professores, os shooting drills, treinamentos feitos para crianças se protegerem em caso de um tiroteio escolar, as demandas democratas por mais leis voltadas à restrição de armas de fogo na land of the free, ou até a própria história dos Estados Unidos e como ela vem entrelaçada com a produção e venda de materiais bélicos.
Meu tema de análise aqui, hoje, é "simplesmente" o seguinte: por que, nestes casos, verificamos uma tendência de cobertura midiática sobre o estado de saúde mental do atirador como espécie de justificativa para o crime?
Primeiramente, o discurso que vincula atiradores escolares a transtornos mentais provavelmente surgiu após o atentado de Sandy Hook, no qual o atirador matou sua mãe, fez outras 26 vítimas e, por fim, tirou a própria vida. À época, o relatório publicado pela promotoria de Danbury concluiu que o atirador, Adam Lanza, tinha Síndrome de Asperger e que "seus traços obsessivos e ansiosos" foram os principais fatores que o tornaram um recluso social [2].
Além disso, não é difícil encontrarmos artigos e notícias narrando como o Adam Lanza, por conta de seus transtornos mentais, se tornou vítima de violência psicológica (bullying), o que seria, anos depois, a causa da tragédia [3].
Bom, em primeiríssimo lugar, esse discurso absolutamente torto vincula pessoas com transtornos mentais a atiradores escolares, e contribui — de forma, a meu ver, até eugenista — para estigmatizar ainda mais uma parcela da população que já é tão estigmatizada — portadores de transtornos mentais ou condições diversas, como depressão, bipolaridade, autismo, etc.
Em segundo lugar, se sofrer bullying, ostracismo social e viver com transtornos psicológicos fossem fatores determinantes para o surgimento de um atirador escolar, veríamos muito mais school shooters de camadas oprimidas na sociedade — negros, LGBTQIAs, mulheres. Veja, indivíduos que são vitimizados todos os dias por racismo, homofobia, transfobia, machismo e misoginia.
Em franco contraste, o que é possível perceber é que os atiradores escolares são, em sua maioria, homens cisheterossexuais e, grande parte das vezes, brancos [4].
Em seu artigo, chamado Masculinidade adolescente, homofobia e violência, os autores Michael S. Kimmel e Matthew Mahler se propuseram a analisar esse fenômeno. Os autores sugerem que, para além de uma análise somente sobre a forma dos tiroteios (histórico familiar, de transtornos mentais, ou explicações culturais amplas), devemos analisar o conteúdo dos incidentes, ou seja, a narrativa que acompanhou a violência.
Segundo Kimmel e Mahler, então, os school shooters não seriam desviantes com transtornos psicológicos, mas, sim, homens que, em conformação exagerada com a masculinidade, naturalizaram o uso da violência como meio legítimo para responder a um cenário percebido como humilhante por eles [5].
Em outro artigo, Suicídio de assassinos em massa: masculinidade, entitlement, e tiroteios escolares, os autores Rachel Kalish e Michael Kimmel também escrevem sobre o fenômeno comum do suicídio dos atiradores após as mortes, bem como do entitlement como fator determinante para a violência perpetrada por esses indivíduos. Segundo os autores [6]:
Quando esses ataques à identidade masculina afetam alguém ao ponto de pensamentos suicidas, cometer um assassinato em massa pode ser uma forma instrumental de alcançar um senso de poder; e enquadrar o seu suicídio com violência e agressão pode servir para torná-lo mais poderoso.
Não ouso afirmar que tenho uma solução simples para um fenômeno criminal tão complexo quanto os tiroteios escolares, porém, certamente, o caminho para tratarmos esse problema de forma eficaz certamente passa pela reconstrução da masculinidade na nossa cultura ocidental.
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[1] JORNAL NACIONAL. Número de tiroteios em escolas é o maior em dez anos. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/08/19/numero-de-tiroteios-em-escolas-nos-eua-e-o-maior-em-10-anos.ghtml [2] Scheper-Hughes, N. (2018). How to talk (and not to talk) about school shootings. Anthropology Today, 34(2), 3-4. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8322.12417 Disponível em https://escholarship.org/uc/item/4hk3j76x [3] Adam Lanza's Obsessions In Chilling Detail. https://youthtrainingsolutions.com/news/adam-lanzas-obsessions-in/ [4] Kimmel, M. S., & Mahler, M. (2003). Adolescent Masculinity, Homophobia, and Violence: Random School Shootings, 1982-2001. American Behavioral Scientist, 46(10), 1439–1458. https://doi.org/10.1177/0002764203046010010 [6] Rachel Kalish & Michael Kimmel (2010). Suicide by mass murder: Masculinity, aggrieved entitlement, and rampage school shootings, Health Sociology Review, 19:4, 451-464, DOI: 10.5172/hesr.2010.19.4.451
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